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YORÙBÁIANO, de Ayrson Heráclito

ABERTURA: 7 DE AGOSTO DE 2021

ENCERRAMENTO: MARÇO DE 2022

CURADORIA: MARCELO CAMPOS

Cura

A cultura yorubá foi uma das últimas a ser implementada no Brasil da diáspora, do sequestro e da escravidão de povos africanos. Um país que dizimava, explorava e marcava a carne dessa população.

Chegando somente no século XIX, os povos da África subsaariana, por outro lado, se compunham de reis e rainhas, lideranças espirituais e políticas que permaneceram como fontes de saberes ancestrais, detentores de diversas tecnologias. Com isso, a rede de trocas e de ensinamentos, os ritos e as visões de mundo compuseram a vitalidade e a herança da população afrodescendente que se espraiou pelo país.

Os saberes se amalgamaram. Aos mitos nagôs se somaram os jejes, gerando tradições compostas, jejes-nagôs. Tais mitologias conquistaram a mais ampla penetração na história do Brasil. Uma mitologia repleta de cores, elementos da natureza e dramatizações que seduzem anciãos e crianças. Estamos falando da cosmovisão encantadora que deu origem aos candomblés, cotidianamente ameaçados e perseguidos, ainda hoje. As diversas lendas e ìtàn nos apresentaram os deuses africanos, os orixás.

Essas histórias, até hoje, são vividas nas ruas de nossas cidades, nos romances, nos livros, nos enredos de escolas de samba e, sobretudo, na oralidade. A partir das lendas, ficamos sabendo de um mundo sem pecado, em que a natureza dos seres e dos bichos se complementa. A consanguinidade, conceito restritivo, foi desafiada por constituições de outros tipos de parentescos relacionados às famílias de santo. De outro modo, a constituição do eu se relaciona a características herdadas dos deuses que nos coroam como filhos e filhas prodigiosos. Essa mesma mitologia nos apresenta caminhos (odus) repletos de amores e traições, de revoltas e encantamentos, além das múltiplas possibilidades de vitória frente a toda e qualquer adversidade. Logicamente, esse enredo poderoso não passou despercebido pelas artes brasileiras.

Ayrson Heráclito representa a grande reinvenção poética e política desse Brasil yorubano, vindo de uma Bahia nagô que incorporou em seu cotidiano os oúnjẹ, as comidas, os temperos, o iyọ̀, o sal, e, sobretudo, o epo, azeite de dendê, que, segundo o artista, compõe nossa impossível mistura no Atlântico, onde azeite (epo) e água salgada (omi iyọ̀) se separam. O dendê, então, se liquidifica em componentes corporais, como a saliva, o sêmen, o sangue. E, ainda hoje, os deuses e as deusas yorubanos são recorrentemente temperados em ritos de maruim.

Desse Brasil, Ayrson Heráclito refaz a memória para secar feridas históricas coloniais, abertas pela exploração dos corpos em busca de riquezas na cultura canavieira. Rememorar a história, nas obras do artista, ganha um sentido de expurgação, de despacho. As feridas se juntam ao gesto de evidenciar algumas biografias, trazer rostos jamais conhecidos, rostos imaginados. Muitas vezes, os trabalhos apresentam um caminhar performático e sagrado em luta, em êxtase, em revolta. O povo de origem nagô, desde a própria denominação negativa “anagonu”, precisou reverter o estigma da subalternidade.

A representação dos orixás, nas obras de Ayrson Heráclito, ganha a complexidade e o orgulho necessários na observação dos corpos, ara, das danças, ijo, dos gestos, da condição fenotípica que culminam em cenas e encenações lendárias, em que cada corpo se apresenta, ativando jogos de correspondência em um misterioso diálogo com a beleza, ewá.

Por diversas vias, Ayrson Heráclito atravessa a história da arte, incorpora o impacto da obra de Joseph Beuys e exercita o entendimento atualizado da condição espiritual da arte em contato com forças ancestrais, em conexão com o invisível. Por isso, ao “regressar à pintura” baiana, imagina a cidade de Salvador tingida de dendê, um tempero-unguento, um óleo-amuleto.

Ayrson Heráclito se torna, cada vez mais, um dos mais significativos artistas do Brasil a elaborar ritos de cura, guardando uma obra singular que negocia as relações entre um passado nefasto, constantemente sacudido e ritualisticamente eliminado em banhos de ervas (ìwẹ̀ orí) com águas frescas (omi odò tó ń sàn) ou no alimento constante às cabeças (borí) para que se mantenha o equilíbrio do corpo e do espírito.