á lugares que nascem com a vocação para o trabalho, atualizando os modos e as alegorias do labor e do sacrifício. Solos sacros, continuamente profanados e purificados pelos afazeres daqueles que ali pisam. Somos conduzidos para um em particular pela travessia de um jardim estreito, um labirinto de corredor único, uma ruazinha arborizada constituída de memórias, o ateliê de Lucia Laguna. Ele já foi fábrica de brinquedos; hoje fornece os andaimes que estruturam suas novas paisagens. Sempre foi, contudo, uma espécie de escola.
O professor ensina aquilo que quer aprender. Estabelece um diálogo com seus satélites que, em trajetórias regressas, narram aquilo que viram. Aqueles próximos relatam o que vivem, ao mesmo tempo que se impregnam daquilo que a mestra sonha. Antes de o mundo ser visto, precisa ser sonhado. E é por meio desses sonhos coletivamente sonhados que surgem superfícies que incorporam os marcos das constelações de ciganos parceiros, que toleram e aceitam o que “já vem começado”, mas que necessita ainda de tudo para existir.
Tudo é acúmulo. Tempo da artista e tempo do outro; temporalidade que incorpora os dias de sua existência e da vida daqueles que as fazem existir. Com seus corpos celestes, pintando em grupo e em constelação, Laguna produz a peculiar condição de um ciúme construtivo, em que negocia aquilo que deseja com aquilo de que não se pode abrir mão, mesmo que ofertado pelo outro. Seu jogo pictórico é dessa natureza. Composto do vetor do sedentarismo e do nomadismo, da crise e da certeza, da intuição e do conhecimento, mas sobretudo de sacrifícios visuais irreversíveis. Sabe que se conquista em proporção ao que se abandona, então cada quadro é a sedimentação de muitos outros, que deixam miragens de suas existências pela arqueologia colorida da tinta em camadas.
Laguna cria paisagens que são cartografias de um caminhante sem destino e sem pressa. Malhas sobrepostas, marcadas pelo tempo que age sobre a urbe e por entre a pintura. E, por mais impressionantes que sejam essas paisagens, geografias-mundo de uma grafia imaginal de mundo ainda em insinuação, estamos diante de um conteúdo de impressões rotineiras, de cunho doméstico, que resumem o desejo da pintora de pairar sobre seus próprios fragmentos, sua própria história, sua própria espreita. Pinta tudo o que vê, e o que não se vê. O que paira. O halo delicado dos avistamentos do vale, da favela, e das vigílias solitárias durante a noite, quando a escuta atua mais que a equivocada visão. Esse é seu território, aquele que resume seu desejo de continuar a marcha, mesmo quando o deslocamento se encerrou e tudo o que sobra para a navegante é confundir “porto” com “bordo”. Gentis e quase espelhadas palavras para aquele que indiscerne no horizonte céu de mar.
Cadu e Clarissa Diniz
Curadores