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Imagens que não se conformam

MAIO DE 2021 – FEVEREIRO DE 2022

CURADORIA: MARCELO CAMPOS E PAULO KNAUSS

Inventário de diferenças

A exposição Imagens que não se conformam propõe diálogos contemporâneos sobre a história do Brasil a partir da coleção do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro (IHGB). 

A instituição acadêmica foi fundada em 1838, na cidade do Rio de Janeiro, e, desde então, reúne estudiosos da história, da geografia e das ciências sociais dedicados a pensar a sociedade brasileira. A missão institucional se consolidou em torno do objetivo de coligir documentos da história do Brasil, formando uma das mais importantes brasilianas conhecidas entre nós. Na sua origem, a coleção geral se formou com o sentido de contribuir para a afirmação do estado nacional, cuja independência havia sido declarada em 1822. O IHGB fez, assim, parte do conjunto das instituições que participaram do processo de consolidação do Império do Brasil e tinha como patrono o imperador dom Pedro II. Seu perfil se renovou em tempos republicanos e de democracia, aprofundando sua dedicação ao patrimônio cultural.

A partir do diálogo com a criação da arte contemporânea, a exposição busca renovar os significados das peças da coleção do IHGB para interrogar, do ponto de vista artístico, as visões sobre a história do Brasil. Com isso, a exposição Imagens que não se conformam lida com questões prementes, como a reparação histórica associada, aqui, aos discursos identitários e ao protagonismo de artistas descendentes dos povos originários, afrodescendentes e de gêneros dissidentes, ausentes das imagens da história.

Se o conhecimento histórico tem o compromisso de reconhecer o que é próprio de cada época, ordenando a distância entre passado, presente e futuro, o olhar de artistas contemporâneos sobre a história explora ressonâncias do passado e latências do tempo a partir da crítica do presente, promovendo abordagens transversais e insurgentes da história. Identifica-se uma ênfase em acontecimentos passados que insistem no presente, processos traumáticos e tragédias que se mantêm inconclusos, assim como sonhos que nunca acabam e que alimentam as expectativas sobre o futuro do Brasil. Nesse sentido, a exposição busca destacar o que há de contemporâneo nas antiguidades e o que há de histórico no contemporâneo. 

Assim, o inventário de diferenças entre história e arte serve para valorizar o deslocamento de narrativas, instaurar novos modos de ver, recontextualizar fatos históricos e reclassificar vestígios, desafiando as fronteiras entre o antigo e o novo, a tradição e o contemporâneo, confrontando o quadro de ideias estabelecidas e de formas consagradas.

Acreditando que a arte interroga a história, o MAR e o IHGB se juntam para pensar a construção do Brasil, contribuindo para pensar historicamente o presente.

Presentismo

Entre 1835 e 1845, o dinamarquês Peter W. Lund (1801-1890) inaugurou a pesquisa da paleontologia no Brasil e abriu o campo da prática arqueológica, explorando as muitas grutas da região mineira de Lagoa Santa. Inúmeros fósseis foram encontrados, identificando a existência de mamíferos imensos extintos, como os ossos de uma preguiça gigante, que confirmaram que a vida pelas terras do Brasil era muito mais antiga do que se supunha. Mas foram os 30 esqueletos revelados que chamaram atenção, alimentando, desde então, a interrogação sobre a antiguidade da presença humana na América do Sul.

Em 1845, Lund enviou 20 mil itens reunidos em suas investigações ao rei da Dinamarca, Cristiano VI. Decidiu, porém, encaminhar ao IHGB a peça mais importante de suas descobertas: o crânio do homem de Lagoa Santa. Trata-se de uma das raridades da coleção do IHGB e um tesouro do patrimônio cultural do Brasil. Mas é igualmente um documento de como Peter W. Lund encontrou na instituição acadêmica brasileira um espaço para debater e divulgar suas hipóteses sobre a história da vida nas terras do Brasil.

O homem da Lagoa Santa é um símbolo da história da ciência no Brasil do século XIX. Diante do crânio, não há como escapar do debate sobre a origem do Brasil e a ideia comum de que a evolução distancia o passado do presente. A universalidade do crânio, porém, sugere que o largo passado humano é mais próximo do que se supõe. O tema do crânio aparece na criação contemporânea de Paulo Nazareth e coloca o futuro em dúvida. O ponto de vista presentista embaralha a ordem do tempo.

Cores da história

Usualmente, as cores são vistas como próprias do domínio dos artistas. Ao longo da história, porém, as cores se afirmaram como marcas de identidades e hierarquias sociais.

No Ocidente, as cores se tornaram a base da heráldica, arte e ciência dos símbolos de identificação de famílias, grupos sociais, nações, instituições e até marcas comerciais. A origem ocidental desse código de cores está associada à história da cavalaria europeia medieval e à afirmação da hereditariedade como princípio de organização social, daí sua relação com a genealogia de famílias e das nações. O código das cores acompanhou igualmente as tradições religiosas e a representação dos atributos de divindades. No Brasil, a heráldica se institucionalizou na época do Império com a criação do Cartório de Nobreza e Fidalguia. O mais destacado escrivão oficial foi o artista de origem francesa Luis Aleixo Boulanger (1789-1874), autor do armorial mais importante da época. Nos brasões de armas, a combinação de cores inscrevia a identidade aristocrática.

Na criação artística contemporânea, a memória das cores serve de fonte para abordar a história da diáspora africana, afirmando identidades étnicas e denunciando o racismo que classifica a cor da pele. Na obra de Juliana dos Santos, o azul da estamparia adire, de tradição iorubá, ressurge no manto do rei e da rainha do congado. A cor ganha sentido sagrado ao se relacionar a imagens religiosas, como no caso de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos ou Iemanjá. De outro modo, as cores na pintura de Rubem Valentim se combinam a formas que criam emblemas étnicos e permitem reconhecer caminhos da imaginação heráldica. Pelo exercício do colorido, os artistas revelam genealogias apagadas e promovem uma interpretação da história pela experiência da cor.

Usos do passado

O que é preciso lembrar? Quem recorda quando um país tem memória? A essas perguntas, as repostas que se apresentam são, muitas vezes, institucionalizadas por narrativas dominantes. O Marco da Cananeia, peça em pedra de lioz datada de c. 1505, expressa o domínio do território por colonizadores europeus no atual litoral paulista, depois da chegada dos portugueses em Porto Seguro. No entanto, povos originários já habitavam as mesmas terras. 

Em iniciativas atuais, a luta pelo direito à terra continua sendo uma pauta de grupos tradicionais, indígenas e quilombolas. Yacunã Tuxa, por exemplo, cria colagens e ilustrações apresentando a discussão sobre os direitos de povos originários. Nas obras de Yacunã, as mulheres indígenas votam, protestam em passeatas, mesclam memórias ancestrais com ambientes contemporâneos. Uyrá Sodoma denuncia a destruição da floresta na série de fotografias A última floresta, na qual a artista se mimetiza a madeiras e plantas calcinadas. Uyrá denuncia desmatamentos e desaparecimentos de espécies botânicas, como as registradas por missões como a de Carl Von Martius e João Barbosa Rodrigues. Em Sallisa Rosa, temos obras que mostram a apropriação metropolitana de nomes e termos em línguas originárias, agora nomeando farmácias, joalherias, lojas de pneus e marcas de cerveja. Artistas indígenas do nosso tempo conduzem releituras da história do Brasil e provocam novos olhares sobre vestígios antigos.

Reparação histórica

Tanto o registro e a memória quanto a reparação histórica se aproximam dos gestos artísticos contemporâneos. Diambe Silva, em ações performáticas denominadas Devolta, se coloca diante de monumentos da cidade interrogando o protagonismo de personagens associadas à violência histórica da escravidão. O artista propõe, assim, uma espécie de “ponto de fogo”, prática de matrizes afro-brasileiras que circunda lugares e pessoas para a libertação, a cura, o descarrego por meio de uma roda de fogo.

Na constituição de grupos marcados pelos traumas da escravização, mesmo deslocados por diásporas, orfandades, as famílias são refeitas a partir de laços de parentescos agora ancestrais, como explicitam as obras de Moisés Patrício, da série Álbum de família. Assim, na partilha de segredos dos cultos, como as mandingas presentes nos cadernos dos revolucionários malês, as heranças e afinidades se prolongam por séculos nas famílias de santo na religião do candomblé. Em Gê Vianna, a presença da ancestralidade deslocada em cotidianos banais, nas ruas, nas feiras, se emparelha à comparação dos registros históricos colonialistas.

A imaginação da arte é necessária ao desmonumentalizar narrativas predominantes e promover a reparação histórica.