Yuri Firmeza: Turvações Estratigráficas
Certa vez, Jacques Derrida, quando convocado a fazer um balanço de sua vida, definiu-se como um herdeiro apenas; herdeiro daqueles com quem manteve, em sua obra, uma relação de diálogo e, não raras vezes, de contestação. Herdar, para ele, significava ser fiel e, ao mesmo tempo, infiel aos que nos precederam, cujos despojos não nos seria possível escolher, senão a eles se vincular de modo ativo e, sobretudo, livre. Isso porque, para que a vida se mantenha em movimento – não importa em qual direção – caberia aos contemporâneos uma atitude nem de rechaço, nem de submissão contemplativa à matéria constituída, não obstante fragmentária, que chega até nós. Mas, exatamente, a escolha de preservá-la viva por intermédio de sua permanente reapropriação, a fim de que ela não seja condenada à elisão do esquecimento. Trata-se, então, de deixar para os que virão aquilo que, não obstante inteiramente reconstituído por nós, já nos havia sido deixado pelos que se foram. Uma atitude, segundo Derrida, avizinhada do abandono, do dom e do perdão.
Atitude análoga é a de Yuri Firmeza, na exposição Turvações Estratigráficas. O artista toma para si despojos arqueológicos – patrimônios da União – encontrados durante a reforma do Palacete D. João VI e do Terminal Rodoviário Mariano Procópio para a instalação do MAR, bem como os destroços oriundos das remoções efetuadas no Morro da Providência, região portuária do Rio de Janeiro. Yuri torna-se, com isso, legatário de uma matéria espessa e indócil, cuja opacidade nos obriga a indagar: quais existências, ali inteiramente soterradas, continuam a pedir voz e passagem naqueles detritos em desalinho? Quais as formas de vida ainda em revulsão, cujos ecos o silenciamento forçoso do progresso urbanístico não consegue evitar? Como deixar viver aquilo que repousa, em desassossego, sob nossos pés?
A conexão com a algaravia de vozes que emana de tais despojos é efetuada pelos vídeos que o artista sobrepõe ao material arqueológico, em especial aquele em que a avó, portadora do mal de Alzheimer, repete incessantemente algumas passagens de sua infância. A velha senhora e seu neto, à moda de Derrida, encontram uma razão singular de existir diante da inclemência do tempo e sua força de tudo arrastar consigo: por meio da fabulação, ambos recontam uma história da qual não participaram, mas que lhes pertence mais do que a ninguém. Yuri faz-se, assim, um herdeiro apaixonado do seu presente.
Julio Groppa Aquino
Interlocutor
Yuri Firmeza
(São Paulo, 1982)
Vive e trabalha em Fortaleza, onde é professor do curso de cinema e audiovisual da Universidade Federal do Ceará. É mestre em poéticas visuais pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo – financiado por bolsa de pesquisa Fapesp. Realizou exposições em diversas cidades do Brasil e do exterior. Foi curador – em parceria com Beatriz Lemos – do Encontro Sul-Americano Inventando o Lugar; do ciclo de conferências internacional A Imagem-pensamento de Letícia Parente – em parceria com André Parente e Solon Ribeiro –; e do Simpósio Internacional A Vida Secreta dos Objetos – em parceria com Cesar Baio. Publicou textos em jornais e revistas de arte e cultura.
Interlocuções
Clarissa Diniz | Julio Groppa Aquino | Paulo Herkenhoff
Expografia
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